Lucius Provase tem mestrado e doutorado em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo e um pós-doutorado concluído na Universidade Federal do Paraná. Professor de língua portuguesa e tradutor do francês e do húngaro, incluindo a obra Modernidade, Modernidade de Henri Meschonnic, publicado pela Edusp. Publicou artigos sobre poesia concreta e a poesia marginal dos anos de 1970.
29 de janeiro
Não permite a inversão
entre predicado e sujeito a sintaxe do
esquecimento neste caso cabe
a mim na linguística dos corpos
o papel de complemento
Adjunto memorial das mãos
desta criança guardo entre
travessões a falta de habilidade
em lidar com certas situações
porque não é só nas crises
O’Hara que escolhemos
reiteradamente a quem amar é
a cada passo ou respiração que
nesta sintaxe marca o pé a
tônica ou a hesitação Como
objeto direto sigo preposicionável apenas quando
o pronome é oferecido a ti
como tônico a mim decidindo
inesperadamente que amar é
um advérbio de modo
31 de março
Não era feriado
quando você
colonizou meu futuro.
Primeiro, a língua: tirou de mim o
sujeito, removeu os
complementos, deixou-me sem
verbo; os restos do meu
vocabulário servidos como
acompanhamento para uma
refeição sem entrada.
As minhas crenças, que
eram poucas, substituídas:
os cabelos deixados no sofá,
meu ritual; seu cheiro na
minha pele, minha oração;
suas unhas, leves, nas
minhas costas, meu livro
sagrado; seu corpo, minha
ressurreição. Meu deus
coube, então, na ponta dos
meus dedos sobre seus lábios.
A matemática, tão
exata e precisa,
reduzida a um
acontecimento
inconciliável entre
seus olhos e a sua palavra.
O mármore e a murta.
Desenhou em mim fronteiras,
fundou cidades em minha pele.
Abriu clareiras entre meus pelos,
dizimou populações que habitavam
os intervalos de nossa respiração,
roubou minérios incrustados em
meus poros.
Você recriou a minha
epistemologia.
E tudo que conheço
passa pelo aroma
que sai da sua boca quando
declama poemas inventados.
Tudo o mais que era
seu me ocupou, tomando de mim
o que,
achava,
era essência.
17 de maio
Há certa beleza naquilo
que se encerra.
(versado nas belas artes da despedida)
Deixo algo para trás enquanto
caminho – de costas –
no ritmo daquele jazz
que ouvimos na cozinha
Levo comigo uma cesta
de memórias variadas
que não pude escolher –
águas com gás, Take five,
Santiago, Sala São Paulo.
(aprendiz de um luto porvir)
Recolho as roupas pelo chão,
lavo a louça, recito um poema
aleatório de uma escritora cotada
para ganhar o próximo prêmio Nobel
de literatura.
Sorrimos.
Revisito as fotos que aparecem
alheias a minha vontade.
O café sem açúcar de todas as manhãs
torna definitivo o destino daqueles dois ou três
nomes que escolhemos –
antes mesmo do começo.
(abraço o que a fortuna me trouxe)
15 de agosto
São pedaços seus
que encontro pela cidade
alguém que escreve
porque a voz já não
dá conta de tudo
o que ficou preso
pela memória
pois isso é o que amamos
na arte
aquilo que não coube
no quebra-cabeça
de cidade que você
deixou para que eu montasse
sem você em meus braços
nesta arquitetura da memória
cada esquina que se dobra é uma dobra
em si mesma
em nós os nomes que se
calam se convertem
nos bairros que visitamos
naquele dia em que você
me disse que não
queria estar em você
quando tudo o que eu queria
era ser a transversal que cruza
seu caminho ou seu corpo
no quebra-cabeça desta cidade
eu já não encontro
as peças que compõem
a borda
29 de setembro
Daqui dez, quinze ou vinte
anos observando sua imagem
em repouso na cadeira
como uma pintura renascentista
reencenada por uma IA
que funciona
buscando as respostas
para os dilemas que nada tem a ver com
a sua imagem ou com pinturas
abstratas renascentistas impressionistas
vou lembrar de que aquela imagem
era de um dia que era um dia
era um dia com sol cansaço e flores
(havia flores?)
as flores são a gramática do amor
uma rosa é uma rosa é uma rosa
a gramática é repetir um nome de
novo de novo de novo
quantas vezes podemos repetir
um nome em “L” quantas vezes podemos
repetir um dia e a saudade daquele dia
e saudade da saudade daquele dia
nada ali era banal pois a fragilidade
do amor é aquilo que habita
a gramática da flor
16 de dezembro
Olhar a foto até que ela se desfaça
se despedace se apague borre
até que se torne um pedaço vazio
de papel fotográfico que quando queimado
solta aquela chama tão laranja
não porque alguém vai queimar a foto
já que ela se desfez se apagou se despedaçou
borrou mas alguém em algum momento
certamente queimará a foto que então
não se desfará não borrará não se apagará
não se despedaçará mas o amor ah
o amor esse sim será partido em novas conjunções
provavelmente adversativas talvez explicativas
certamente não serão aditivas porque o amor
Carson não é falta tampouco adição
o amor é aquela foto que não borra
que teima em não se desfazer
que insiste em não se despedaçar
que persiste em não se apagar
só que o amor também são aqueles ingressos
guardados na caixa o perfume daquela mão
naquela barba o amor naquela barba naquela cama
naquele Beijo naquela boca que água na boca
Itamar sempre esteve certo
naquela canção que alguém poderia
um dia dizer que era uma memória
o amor é essa memória das canções
que foram cantadas juntas e em solitude
são as sessões extras de terapia de futebol
de academia de corrida ou no ônibus
no carro no trânsito tudo aquilo que alguém
pode fazer para esquecer
o amor é aquela foto em cima de uma mesa
a foto prestes a desfazer-se borrar-se apagar-se
despedaçar-se
aquela foto que alguém poderia ter tirado em um dia
especial ou um dia qualquer um dos dois de azul
o outro de barba
aquela foto é a promessa do esquecimento
do cheiro da cor das palavras aquela foto
é tudo de concreto que havia entre a lembrança e o infinito
aquela foto não mostra as mãos que tomaram
a forma das outras mãos
aquela foto não mostra as palavras que tornaram
matéria o que alguém poderia ter dito se uma
foto pudesse falar algo além daquilo que ela
já diz
a foto é todo encanto futuro que não será
compartilhado
Olhar a foto até ter certeza
de encontrar naquele olhar
a beleza
Desenho de Ariyoshi Kondo.
Comment (1)
Não se comentar o absoluto.
Meus aplausos e palavras se revelam pelo silêncio e pelas não-linhas.